terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Diálogos entre Roma, cidade aberta e alguns conceitos historiográficos

Por Cássio Sales, graduando da Universidade Federal de Pernambuco

Uma breve trajetória do neo-realismo

         Roma, cidade aberta (1945), longa metragem do diretor italiano Roberto Rossellini, é uma das obras mais importantes da tendência cinematográfica que ficou conhecida como “neo-realismo”, intitulada a partir do artigo de 1943 do crítico de cinema Umberto Bárbaro. Resultado de discussões entre intelectuais de esquerdas no início dos anos 1940, muitos dos quais assumidamente comunistas, como De Santis, Mario Alicata e Gianni Puccini, a linguagem neo-realista pode se confundir com um compromisso político e estético que pretendia trazer para a sétima arte a realidade popular e social da Itália em enfrentamento à cultura oficial imposta pelo regime fascista.
            Enquanto Luchino Visconti, umas das figuras pioneiras do até então novíssimo cinema italiano, considera Obsessão (1943), obra de sua autoria, marco inaugural do neo-realismo, apresentando como argumento uma possível influência exercida sobre as produções de De Sica - se antes este diretor havia criado filmes como Teresa Venerdi e Un garibaldino ai convento, depois de Obsessão, realizaria A culpa dos pais, aderindo a uma linguagem completamente distinta da anterior -, Rossellini sugere que a origem da tendência neo-realista não está nem na obra de Visconti, nem em Roma, cidade aberta, mas nos documentários de guerra romanceados, como o seu próprio La nave Bianca - notadamente influenciado pelo documentarista Francesco De Robertis -, e, depois, com os filmes de ficção de mesmo gênero: é o caso de Luciano Serra pilota e L’uomo âalla Croce, nos quais participou como roteirista e realizador, respectivamente. Não é de se espantar que não haja consenso entre as opiniões ligadas a inauguração do neo-realismo, até porque ainda que Obsessão e Roma, cidade aberta provenham de uma mesma orientação ideológica, não foram elas conduzidas a um encaminhamento imediatamente comum. Rossellini parece ser mais objetivo por apresentar expressamente a intenção de enfrentamento entre uma contra-cultura operária e uma cultura dominante, promovendo esse embate sob um contexto mais universal e suscetível que Visconti: a segunda guerra mundial. Obsessão, por outro lado, se encarrega de trazer essa realidade popular em situações mais diluídas no cotidiano, de maneira mais sutil na narrativa, mais propriamente expressa enquanto temática e através dos recursos técnicos de sua linguagem cinematográfica, se afastando de uma forma de embate declarado.
            Chiarini (1974) aponta para uma assustadora efemeridade do neo-realismo enquanto tendência: se havia iniciado em 1945 com Roma, cidade aberta, em 1948 com A terra treme, de Luchino Visconti, alcançava seu auge, já partindo em decadência até finalmente, por volta de 1949, se transformar em mera fórmula de se fazer cinema. Para o também renomado diretor italiano Frederico Fellini - que inclusive participou de Roma, cidade aberta quando ainda era um jovem roteirista -, Roberto Rossellini teria sido o único representante do que se pode chamar neo-realismo italiano: os outros fizeram realismo, verismo ou tentaram traduzir um talento, uma vocação, numa fórmula, numa receita. (FELLINI, 2000, p.76).
Não creio que, sendo o neo-realismo fruto de mentes extraordinariamente originais - mentes que superaram com maestria as limitações do cinema enquanto expressão artística recente, transformando-o em arte de forte identidade -, possa ter sido essa uma tendência que surgiu em efervescência para padecer de maneira abrupta. Como qualquer tendência, há de se perceber no neo-realismo uma continuidade mesmo que ramificada, porque toda originalidade estimula novos gênios a percorrer os caminhos que ela própria cria e esconde. Desconsiderar os estímulos do neo-realismo enquadrando-o num restrito campo criativo que remete a conservação de sua pureza enquanto idealização de uma linguagem e realização primeira, é, pois, desconsiderar a capacidade de mutação de quaisquer tendências inovadoras que, embora possam enfrentar conseqüentes e naturais momentos de reprodução, estão sempre suscetíveis a reinvenções. Cabe aqui referenciar Pasolini em sua obra, particularmente em Teorema. Não é necessário investir busca minuciosa nesta obra prima de 1968 para se perceber semelhanças e desdobramentos com as melhores e mais peculiares das intenções do neo-realismo dos anos 1940: explorando em tom mais poético e acidamente provocativo, apoiando-se numa linguagem mais simbólica e subjetiva, pode-se notar um desenvolvimento de vertentes mutantes do tradicional compromisso social neo-realista no que se refere tanto aos aspectos temáticos, quanto aos diversos aspectos técnicos. Dessa forma, o neo-realismo parece ter tido ou uma vida mais longa do que sugere Chiarini (1974) e, me atrevo a afirmar, do que radicaliza o mestre Fellini, ou, ao menos, ter se imposto claramente como linguagem primeira que estimula características notadamente suas tornando possível o desenvolvimento de linguagens identificáveis como vertentes.
A linguagem neo-realista em Roma, cidade aberta e alguns conceitos de História

Em Roma, cidade aberta, já de imediato é possível reconhecer pontos de contato com a História: realizada recente a queda do fascismo italiano, representa registro fresco do imaginário, das noções e, sobretudo, do sentimento não só de Rossellini enquanto criador artístico, mas enquanto representante e representador de grande parte daqueles que conviveram com a realidade da Segunda Guerra Mundial no contexto da sociedade italiana. Nesse sentido, é como se a obra de Rossellini também contribuísse como vestígio histórico que a um passo se transforma em documento, se aqui considerarmos a concepção do precursor da Escola francesa de Annales, Marc Bloch, que reconstrói a idéia de documento histórico, invertendo as relações atribuídas pela tradição metódico-positivista na historiográfica: não há imperialismo do documento sobre o historiador se sabe o historiador interrogá-lo. Bloch alarga o conceito e a metodologia de se trabalhar com as fontes abrindo, ainda que indiretamente, espaço para o audiovisual enquanto documento histórico.
            Os clássicos autores da historiografia, em particular Luciano de Samósata, Tucídides e Políbio, pregavam que a verdadeira História é aquela que busca a cima de tudo a verdade, construindo-se através de uma narrativa clara e objetiva, imparcial, impávida, de inteligência política e capacidade expressiva. Fácil seria destacar esses três últimos aspectos em Roma, cidade aberta, pois, com locações feitas ainda no período de guerra, torna-se notável a impavidez do diretor e a capacidade expressiva que ganha a obra – ressaltada ainda pelos diversos outros elementos técnicos e estilísticos que utiliza. Já o conteúdo do filme, por si só, traduz a força da inteligência política que contém: torna-se evidente como a luta ideológica contra o sentimento de opressão, criado pelo fascismo, atravessa as diversas camadas da sociedade italiana, indo desde a resistência militar organizada (representada por Manfredi), passando pelo operariado (representado pela família de Pina, mais especialmente por seu noivo Francesco, que se junta a Manfredi), chegando a alguns membros da Igreja católica de tendências progressistas (figurados pelo vigário Don Pietro). Há de se destacar ainda como este ideal libertário atravessa igualmente as faixas etárias, pois em vários momentos do filme nota-se como a consciência política comove até o pequeno Marcello, filho de Pina, que, seja de maneira armada junto aos seus amigos, seja através do cinismo ao lado de Don Pietro – na cena em que fingem socorro ao avô do garoto -, se mostra valente o suficiente para enfrentar o regime.
A respeito das demais relações possíveis de se estabelecer entre narrativa histórica - aqui, a clássica -, e a narrativa do neo-realismo representada por Rossellini, cabe-nos atentar para o uso técnico do instrumento que é por excelência do cineasta, a câmera, que em Roma, cidade aberta parece priorizar o registro de cunho documental das cenas interpretadas, promovendo ora uma imparcialidade do representado pelo olhar do diretor, que incidirá inteiramente na recepção do espectador (uma característica, no entanto e antes de tudo, intencional e bem situada em seus princípios ideológicos), ora comportando-se como elemento de simplicidade estética que enaltece a narrativa em seu conteúdo - elemento também fortalecido pela considerável ausência de efeitos visuais. Sobre esse assunto, comenta Truffaut:
Rohmer disse, certa vez, que a genialidade de Rossellini era a sua falta de imaginação. Significa que ele não gostava de invenções, de artifícios, não gostava de flash-back, não aceitava truques... Ele era contrário à ficção. (Entrevista de Truffaut ao documentário Roberto Rosselini: Frammenti e Battute, de 2000, dirigido por Carlo Lizzani.)
A essa questão da ficção levantada por Truffaut, vale reiterar uma característica do cinema neo-realista utilizada por Rossellini em Roma, cidade aberta: a filmagem em cenários reais. Creio que representa um meio de pretensão para se alcançar e apreender uma realidade não ficcional, dentro do seu limite ficcional, numa tentativa também de se estabelecer uma fácil assimilação e inserção da trama por parte do espectador – uma forma de se aproximar de uma realidade também popular?... Nesse sentido, a nota exibida no início do filme na qual se adverte para o seu caráter fictício, não desconsiderando, contudo, as possibilidades de semelhanças com histórias reais, pode ser facilmente esquecida no decorrer da obra, tanto pelos takes rodados em cenários reais da Segunda Guerra - cenários esses ainda bastante vivos pela realidade não-ficcional -, como pelas próprias histórias que se propõe a contar, histórias que condizem com a realidade daqueles que viveram durante o período dos nove meses de ocupação alemã em Roma. Assim, a narrativa ficcional de Rossellini parece tecer uma linha tênue entre a finalidade de uma obra poética e outra, histórica: discussão clássica que propôs Aristóteles. A obscura - mas intencional -, distinção entre o poder ter acontecido e o que de fato aconteceu, acrescenta a Roma, cidade aberta uma primorosa união entre a narrativa histórica e poética sob um caráter que mais pende para a realidade do que, justamente, para a fantasia: contudo, não é Rossellini um documentarista, mas um romancista.
Como expressão de sua faceta histórica, a obra precursora do neo-realismo italiano cumpre ainda função fundamental para fortalecer uma concepção coerente de História, contribuindo em conteúdo, mais intimamente, para uma história social e política da Itália. Claramente seu foco não é o triunfo do nazismo e fascismo, embora na trama tenham se sobressaído à Resistência: Pina é assassinada por ir atrás de Francesco quando este parte no camburão, capturado pelos soldados; Manfredi não suporta a tortura comandada pelo major Bergmann e Don Pietro é executado após negar informações das organizações clandestinas aos oficiais do exército. A preocupação por uma abordagem que entrelace o político e o popular indica a dupla intenção de Rossellini em enaltecer, com sua narrativa, o outro lado da História, o lado dos vencidos, aquele cujo Angelus Novus de Klee deseja deter-se e sobre o qual destaca Walter Benjamin em seus ensaios Sobre o conceito de História:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. (BENJAMIN, 1994, p. 226).
Se por um lado a história da resistência organizada já implica uma história a contrapelo, a história da resistência antifascista popular implica ainda mais; E esse é um dos principais pontos temáticos de Roma, cidade aberta, que prioriza a classe do operariado. Os choques entre aqueles que convivem nessa realidade com os membros e com a atmosfera das classes dominantes, tanto da burguesia quanto da classe militar do regime, presentes em diversos momentos do filme, acusam tal preocupação: Laurette, irmã de Pina, aspirante ao meio artístico, sente vergonha e despreza a casa de sua família, onde também mora, um lar do operariado; Manfredi critica a vida e as aspirações burguesas que possuía sua amante, Marina Mari, ambições que levariam o próprio líder da resistência ao seu abismo. Em certa cena, quando conversando com Pina, Manfredi descobre a origem humilde de Marina e imagina como teria sido conhecê-la antes, demonstrando maior interesse.
Essa abordagem de Rossellini representa não só o desejo de retratar um cotidiano cultural da classe operária, assim, isoladamente ou apenas no contexto da guerra, mas pretende atribuí-la uma importância histórica que indiscutivelmente possui, ainda que em muitas vezes seja ela ofuscada por uma historiografia que põe, em primeiro plano, fatos e personagens distantes dessa realidade. É como se Roma, cidade aberta, nesse sentido, também fosse uma expressão brechtiniana:
Quem construiu a Tebas de sete portas?/ Nos livros estão nomes de reis (...) A grande Roma está cheia de arcos do triunfo/ Quem as ergueu?  (...) Tantas histórias/ Tantas questões. (Perguntas de um trabalhador que lê em BRETCH, Bertolt. Poemas. 1913 – 1956. São Paulo : editora 34,2000.)
            A obra que parece mesmo ter inaugurado o neo-realismo italiano, além de ser uma obra prima da cinematografia mundial, alterando para sempre o curso do cinema enquanto arte, consiste ainda numa contribuição que deságua potencialmente no aprimoramento da metodologia da História, seja através da temática que propõe, seja pelos recursos estilísticos e técnicos que sugerem uma narrativa particular e inovadora. Roma, cidade aberta de Roberto Rossellini cumpre com uma função nobre da arte, a de provocar e reivindicar sem, contudo, se afastar de uma linguagem poética que tanto a realidade como a ficção comportam. É certamente uma expressão de ousadia; é revolucionária e, assim sendo, concentra-se como uma manifestação de sentimentos capazes de romper quaisquer fronteiras que possam possuir as criações e atividades da cultura humana.

Referências:
Roma, cidade aberta, 1945, Roberto Rossellini.

Ficha técnica (extraído de http://www.adorocinema.com/filmes/roma-cidade-aberta/ficha-tecnica-e-premios/):
Título original: Roma, Città Aperta
Gênero: Drama
Duração:1 hr 38 min
Ano de lançamento: 1945
Estúdio: Excelsa Film / Minerva Film AB
Distribuidora: Arthur Mayer & Joseph Burstyn Inc.
Direção: Roberto Rossellini
Roteiro: Sergio Amidei e Federico Fellini, baseado em estória de Sergio Amidei e Alberto Consiglio
Produção: Giuseppe Amato, Roberto Rossellini e Ferruccio de Martino
Música: Renzo Rossellini
Fotografia: Ubaldo Arata
Direção de arte: Rosario Megna
Figurino: Rosario Megna
Edição: Eraldo da Roma

Roberto Rosselini: Frammenti e Battute, 2000, Carlo Lizzani.

ALBANESE, Gabriella. A redescoberta dos historiadores antigos no Humanismo e o nascimento da historiografia moderna. Università di Pisa.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética/ tradução Antônio Pinto de Carvalho. – Rio de Janeiro : Ediouro, 17ª Edição.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura / tradução Sergio Paulo Rouanet; - 7. Ed. – São Paulo : Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas ; v.1)

BLOCH, March. Apologia da história, ou, O ofício do historiador/ tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

HABERMANS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade/ tradução Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. – São Paulo : Martins Fontes, 2000. – (Coleção tópicos)

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